Segundo fôlego
No jargão dos maratonistas, segundo fôlego acontece depois de um certo tempo de corrida. Nas primeiras passadas, o organismo queima açucar, fonte de energia menos calórica e a gente se sente cansado. Depois, passa a queimar gordura, combustível de melhor qualidade. Nesse câmbio da glicose para a gordura, o corredor se sente bem disposto, com mais ânimo, renovado. Nos meus primeiros anos de vida eu consumi glicose, a energia fácil, que me dava furor empreendedor, mas que fatigou.
Agora estou queimando os estoques de tecido adiposo; um jeito mais lento de gastar-me. Começo a experimentar outra qualidade de vida. Sinto-me revigorado; acho que entrei no estágio do segundo fôlego.
Segundo fôlego, porque ando entusiasmado com a minha crescente identificação com a Missão Integral. Missão Integral para mim é compromisso de alcançar homens e mulheres em todas as suas necessidades, considerando as realidades onde estiverem. Encorajado por teólogos católicos e protestantes que souberam responder ao clamor dos pobres na América Latina, procuro traduzir a mensagem do Evangelho em praxis transformadora, em ação libertadora, em promotora de justiça. Estou envolvido com Missão Integral que não prioriza a salvação de almas, mas busca a salvação de vidas.
Segundo fôlego, porque respiro uma nova liberdade. Puiram as rédeas que me impediam de desgustar cultura. Falsas percepções de pecado perderam força de me deixarem assustado com arte, literatura, música, teatro. Não me percebo indigno por gostar de amenidades que moralismos vitorianos proibem; já não preciso me esconder quando quero ir ao cinema. Quem nunca sofreu o torniquete do tradicionalismo legalista da religião, não imagina como é bom sentar em um teatro e assistir aos textos de Brecht, Shakespeare ou Andrew Lloyd Webber.
Segundo fôlego, porque sou abençoado. Deus me agraciou com gente especial; gente que se importa. Estou rodeado de mulheres e homens que aprenderam a Lingua Brasileira de Sinais (LIBRAS) para fazerem parceria com surdos; de casais que se colocaram em listas de candidatos para adoção; de voluntários que lutam pela recuperação de alcoólicos e drogaditos; de idosos que se doam a idosos em sanatórios; de profissionais que se dedicam em diversas iniciativas sociais.
Segundo fôlego, porque mudei minha biblioteca. Entusiasmado, devoro pensadores judeus, católicos, ortodoxos, ateus, agnósticos. A grade de minhas leituras transborda o Index sutilmente imposto por austeros defensores da Reta Doutrina. Transitar entre tantos autores não só ajuda a cumprir a recomendação paulina de analisar tudo e reter o que for bom, como alarga a minha capacidade de ser criterioso com o que eu outrora aceitava ingenuamente.
Segundo fôlego, porque a minha vida de oração ganhou cores diferentes. Deixei de sofrer ajoelhado para mendigar respostas às minhas petições. Minha espiritualidade era trabalhosa. Eu mastigava as palavras para demonstrar para Deus a minha penitência e assim alcançar o seu favor. Quantas vezes desesperei por não entender o porquê de não ser atendido nas súplicas mais urgentes. Nas horas críticas, era terrível ainda ter que lidar com culpa. O ídolo que por muitos anos chamei de Deus foi destronado. Já não preciso provar a minha fé com resultados. A Graça devolveu-me uma relação de paz com Deus. Finalmente entendi que “no silêncio e na quietude” encontrarei salvação. Aprendi o sentido do Salmo 46:10: “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus”.
Segundo fôlego, porque me tornei um Caleb – o herói bíblico que se sentia um menino com 85 anos. Ele ansiava por conquistar um pedaço da Terra Prometida. Rejuvenecido, vou escrever, pregar, ensinar, discipular, com as forças que moveram aquele rapaz parecido comigo a dizer sim ao chamado de Deus.
Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim
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