Amor ou farisaísmo?
Braulia Ribeiro
Não é fácil separar farisaísmo de amor verdadeiro; mera religião, de fé; medo, de coragem profética.
Tenho fé, aquela certeza interior da limitação da minha humanidade, e da grandeza de Deus. Sei que apesar de sua sublimidade posso me relacionar com Ele de uma maneira pessoal. A fé bíblica não é apenas um consentimento intelectual com as verdades do evangelho, mas relacionamento com o alvo de minha fé é essencial. A fé verdadeira também demanda um compromisso da vontade com as conclusões a que chega minha mente. Torno-me uma realização viva das verdades que creio.
No mundo de hoje no entanto os pressupostos da crença em Deus valem menos do que as emoções que a crença me traz. E estas emoções contraditoriamente são geradas por coisas que não tem nada a ver com Ele. A rigidez cultural da religião me traz muito mais conforto emocional do que seguir o Espírito. Fica complicado exercer uma fé simples porque as emoções humanas são sempre complexas. Jesus me faz tão bem... Como a chocolate, pimenta ou sexo, Jesus se tornou um estimulador da produção de endorfinas. Com esta lógica deixo de ter parâmetros para julgar minha fé. Tudo o que me faz bem deve ser produto de fé. As músicas cantadas hoje na maioria das igrejas só se referem a Deus em relação a mim e minhas emoções, portanto meu subconsciente conclui que tudo no universo gira em torno de mim.
O Espírito Santo paciente, no seu papel de me alertar, me diz que não é assim, e que não preciso me sentir bem, com qualquer coisa o tempo todo. Me mostra que a fé não necessariamente deve me fazer feliz mas sim me gerar uma paz não compreendida pela razão. Me questiono ao julgar decisões ou adotar posturas se o faço por dogmatismo cômodo, por mero conforto emocional, medo ou por convicção real. Não é fácil separar farisaísmo de amor verdadeiro; mera religião, de fé; medo, de coragem profética.
Um jeito de se descobrir a qualidade de fé que se tem é no ambiente de ausência dela. Se circulamos apenas entre cristãos que rezam pela mesma cartilha doutrinária, dificilmente teremos nossa fé/emoção religiosa colocada à prova. É num ambiente de questionamentos, deboches, críticas é que podemos testar a força e de nossas convicções.
A questão do infanticídio, este ano atraiu a máfia ideológica pró-índio que odeia as missões cristãs. Fui submetida durante o ano à diversas sabatinas. Algumas feitas por entrevistadores apenas curiosos, outras por repórteres especialistas em enganar o entrevistado. Em muitos momentos tivemos que nos questionar para saber o que realmente cremos e como podemos apresentar o que cremos ao público.
Por mais confortável que me faça sentir o atribuir ao diabo as perseguições, pensar que estamos sofrendo por amor à Cristo, um subproduto da fé, o Espírito Santo novamente me leva para um caminho diferente e me diz que estou sofrendo devido à minha própria burrice.
Durante muitos anos como missão só nos comunicamos para a audiência evangélica. Não havia nem interesse de nossa parte de falar com o mundo de fora. Vivíamos como a maioria dos crentes no mundo hermeticamente fechado da religião, e nossa única obrigação com o “mundo” era a kerigma, ou proclamação da fé. Hoje graças ao desconforto do Espírito considero este isolamento indesculpável, e vejo que sofremos perseguição não por causa do evangelho, mas por causa de nosso pecado de negligência com a missão mais ampla da igreja. Não amei a sociedade ao meu redor o suficiente para considerá-los dignos de receber minha prestação de contas em sua própria linguagem. Aliás tenho muita dificuldade em falar o socialês, crentês no entanto sai com facilidade. Não amei os movimentos indigenistas para ser transparente e compreensível, para educá-los numa abordagem mais humana. Nos tornamos, por orgulho religioso, uma utilidade pública, com utilidade privada, e isto hoje para nós é a desconfortável marca do pecado que vamos carregar por algum tempo.
Ser sal da terra e luz do mundo, sol e sal, dois elementos conhecidos anti-putrefação, não é coisa simples. Ser fariseu é fácil, viver fé é difícil. Percebo, espero que não tarde demais, que o verdadeiro amor me obriga à transparência e discipulado da sociedade como um todo.
Discipulado e verdade não podem ser trocados por conversão religiosa, e minha maior vitória será amar até o fim aqueles que me odeiam e ao evangelho que prego. Serei discípula d’ Ele quando ainda for capaz de responder em amor aqueles que nunca se convertem, que permanecem no pecado e debocham da minha fé, apesar de todos meus esforços. Não é fácil. Exige cruz, a d’ Ele que me cobre de graça e a minha que mata meu egoísmo, minha obsessão comigo e com minha própria gente.
***
Fonte: Eclésia
Bráulia Inês Ribeiro, está na Amazônia há 25 anos como missionária, é presidente nacional da JOCUM (Jovens Com Uma Missão) e autora do livro Chamado Radical (Editora Atos)
Coleção de textos cristãos e artigos diversos contextualizando as verdades bíblicas para as realidades da nossa sociedade,visando oferecer respostas ou criar questionamentos
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Perguntas feitas a Hans Küng e a nós
18/10/2009 | domtotal.com
'Escrevo para as pessoas que estão em busca'
Entrevista com Hans Küng
Nesta longa entrevista à revista alemã Stern, o teólogo alemão Hans Küng é confrontado pelo entrevistador sobre suas convicções de fé e teológicas. Há 20 anos de ter sua "missio canonica" - a autorização para o ensino da teologia católica - sido revogada pela Congregação para a Doutrina da Fé, devido às suas críticas a João Paulo II, Küng encara também o tema da morte e avalia a sua trajetória de vida.
Teólogo Hans Küng. A reportagem é de Arno Luik, publicada na revista alemã Stern, 15-10-2009. A entrevista publicada em alemão, foi traduzida do italiano por Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Senhor Küng, tenho uma tia com 98 anos que tem um grave problema: ela tem certeza que vai para o paraíso e irá encontrar lá seu marido, filhos e conhecidos, mas se questiona em que estado estarão: jovens, velhos, doentes, sãos?
Entendo que a sua tia tenha tais preocupações. Não se sabe o que pode nos esperar além da porta da morte. Pessoalmente, não posso e não quero imaginar como é o paraíso. Toda pessoa gosta de imaginar, mas deve saber que são só suas imagens. Vivemos em uma época posterior a Copérnico e a Darwin - e portanto não podemos mais imaginar o paraíso como fizeram, por exemplo, Michelangelo e os pintores da Idade Média e do Barroco. Eu não acredito nessas representações simplistas do paraíso, segundo as quais ficaremos sentados em uma cadeirinha de ouro cantando "aleluia".
O Papa Bento XVI acredita seguramente que no além, de algum modo, todos estão sentados juntos. Há não muito tempo, ele dizia que seu antecessor, João Paulo II, estava escorado na sacada da casa do Senhor olhando-nos: então, há um morto que olha lá de cima.
Essa é uma representação surpreendentemente ingênua. O Papa se expressa às vezes de maneira pré-moderna e popular - uma herança da sua fé bávara agrícola. Naturalmente, ele também sabe que o paraíso não é uma casa em cima das nuvens com janelas do céu. Os cristãos iluminados entendem que, no além, nenhum cadáver é ressuscitado, mas que - como dizemos na liturgia - ocorre uma total transformação do modo de ser. Estou curioso para descobrir como será no além.
Senhor Küng, o senhor certamente está desiludido com a sua vida aqui na terra.
Como assim?
O senhor escreveu mais de 60 livros, mais de 30 mil páginas e...
Trabalho com muito prazer. Com toda a modéstia, acredito ter produzido algo que torna o cristianismo, a religião, a ética novamente compreensíveis ao homem moderno.
No entanto, o seu ardor...
Não fui e não sou um fanático, nem um santo. Escrevo para as pessoas que estão em busca.
Apesar do seu compromisso, desde 1989 as duas maiores Igrejas na Alemanha perderam mais de sete milhões de fiéis, e na oração das quartas-feiras em Roma participam anualmente dois milhões e meio de pessoas a menos com relação a alguns anos atrás com João Paulo II. O senhor consumiu seus dedos escrevendo, mas inutilmente.
Não. Tive êxito! Um número incalculável de pessoas me escreve - diariamente - que eu fui uma ajuda para elas. Eu me tornei, involuntariamente, um porta-voz da leal oposição à sua Santidade. Um porta-voz que é levado a sério - até pelo próprio Papa. Estou presente dentro e fora da Igreja. Sem mim, muitos teriam abandonado a Igreja. Muitos me dizem: "Enquanto o senhor resistir dentro da Igreja, eu também resisto".
No entanto, o senhor perdeu a sua batalha. O seu antagonista Ratzinger...
Não é o meu antagonista, e a minha profissão não é crítico do Papa. Sou um reformador, não um subversivo. E não suporto ser sempre chamado de rebelde da Igreja ou...
O seu antagonista se tornou Papa, entrou na história. O senhor será só uma nota de rodapé...
É um desrespeito o que você está dizendo. Você não pode ver o futuro, você...
Mas será assim!
Você acredita? Como uma pessoa entra na história só a própria pessoa decide. Não importa a função, nem o poder. Um exemplo: Tomás de Aquino - não quero me colocar à sua altura - renunciou voluntariamente a qualquer cargo importante na Igreja. O Papa Inocêncio III, seu contemporâneo cultíssimo, foi o mais poderoso de todos os papas. Você conhece Inocêncio III? Não. Esse papa, poderosíssimo em seu tempo, é uma nota de rodapé, mesmo que ainda importante para os historiadores. Mas Tomás de Aquino é constantemente citado ainda hoje como uma autoridade. Não, não me sinto um perdedor.
É claro que o senhor deve dizer e deve ver assim.
Certamente eu vejo assim! Mas há uma outra coisa que entristece na vida: que Joseph Ratzinger, que, em 1966, eu chamei para a Universidade de Tübingen, não continuou no mesmo caminho da reforma, como eu fiz. Então, provavelmente temos hoje essa divisão da Igreja católica entre Igreja alta e Igreja baixa. Eu represento a Igreja baixa; ele, a Igreja alta. Todo o meu trabalho estava voltado para que a Igreja alta mudasse. E nisso, e aqui você tem razão, eu tive só um sucesso limitado. Mas quem venceu uma batalha ainda está longe de ter vencido a guerra. Eu acredito que a atual política do Vaticano é um fiasco. A tentativa de empurrá-la novamente para trás, para a Idade Média, a esvazia. Não se pode trazer os velhos tempos de volta à vida!
Mas, diga-me, por que 200 anos depois do Iluminismo ainda se deveria acreditar em Deus?
Sim, justamente como iluminista, eu lhe digo: existem milhares de motivos para não acreditar.
Nisso o senhor tem razão.
Diante da miséria do mundo e da própria vida, pode-se duvidar de Deus ou confiar em Deus. Não há nenhuma prova estritamente científica a favor de Deus. A sua existência não pode ser fundamentada em argumentos logicamente convincentes. Justamente segundo Immanuel Kant: a razão pura teorética fora do tempo e do espaço não é competente. Por isso, a existência de Deus não pode ser baseada em argumentos logicamente convincentes.
Sério?!
Não brinque. Você certamente ainda tem em mente, de um lado, a sua fé de criança, mas, de outro lado, a sua razão também não tem competência na questão da fé. A existência de Deus é uma questão de confiança razoável.
Confiança razoável? Parece-me ser, pelo contrário, irrazoável, e acho que Mark Twain tinha razão: "A fé consiste em crer em algo que se sabe que não é verdade".
Exatamente uma péssima frase de espírito. Porém, eu lhe respondo muito seriamente com uma frase da Carta aos Hebreus: "A fé é fundamento das coisas que se esperam e prova daquelas que não se veem". Portanto, apesar das suas dúvidas há milhares de motivos pelos quais uma pessoa - apesar de todas as contrariedades da vida - pode acreditar em Deus.
Diga-me um.
Sobre isso, justamente, recém escrevi um livro inteiro: "Quello in cui credo" (Aquilo em que creio), em tradução livre). A fé é sobretudo um problema de confiança de fundo. Confiança na vida. Gostaria de convidá-lo a admitir Deus pelo menos como hipótese. Tome a questão filosófica mundial: por que uma coisa existe no lugar de não ser, ou a inexplicável origem das fundamentais constantes da natureza ou da velocidade da luz. Mas também o problema do infinito na matemática, os rastros da transcendência na música - tudo isso pode ser um convite a crer em Deus.
O cientista Richard Dawkins lhe responderia a essas palavras que ressoam tão belas...
... Eu diria, ao invés, que ressoam tão verdadeiras!
Ele diria: todas as religiões ensinam coisas sem sentido e são perigosas para a humanidade.
Não me fale aqui desses novos ateus! Dawkins é um ideólogo que reage a uma imagem de Deus superada e argumenta de modo extremamente polêmico, sem porém levar a novas consequências. É um estudioso de ciências naturais, sem abertura a problemas filosóficos. Eu me ocupei dos grandes ateus clássicos, analisei Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud. Eles constituem um desafio para mim, não esse...
"A religião", diz Marx, "é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, o espírito de situações sem espírito. É o ópio do povo. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória do povo é a condição necessária para a sua verdadeira felicidade: a condição necessária para renunciar às ilusões da sua situação, a condição necessária para renunciar a uma situação que precisa de ilusões".
Marx tem razão: a religião pode ser o ópio do povo. A religião pode ser um meio de aquietamento e consolação social. Mas não deve ser isso. As análises de Marx também expressam, talvez contra a sua vontade, algo positivo, isto é, que a religião pode ser muito mais - um protesto contra as condições que temos, protesto contra as circunstâncias por causa das quais sofremos.
Essa é a uma interpretação arriscada. "A crítica da religião", diz ainda Marx, "é o germe da crítica do vale de lágrimas do qual a religião é a auréola".
Religião só reverbera? Nisso, Marx - como Feuerbach - provoca um curto-circuito. A religião é mais do que uma projeção. Como a fé, a esperança e o amor, ela não se exaure só no fato de fazer suportar a miséria dos homens consciente ou resignadamente! Não, a religião pode ser um motivo excepcionalmente forte, como diz Marx, não só para interpretar o mundo de forma diferente, mas para mudá-lo.
Meu Deus, mas que mundo o seu Deus criou. Enquanto nós estamos aqui falando, crescem sem parar as montanhas de cadáveres. A cada cinco segundo uma criança com menos de 10 anos morre de fome ou de sede. Estamos falando de míseros trinta minutos - 360 crianças mortas!
Por que Deus não impediu o mal? O filósofo grego Epicuro já volta essa pergunta contra a religião no ano 300 a.C. Mas talvez devemos nos perguntar antes: por que os homens não impediram o mal? Com relação ao mal, toda pessoa que crê em um Deus bom e vivo é confrontado neste mundo a um mistério que...
O senhor chama de mistério a morte de crianças pela fome?
Não. O mistério é por que Deus não impediu o mal. A dor imerecida de crianças não pode ser justificada com nenhuma argumentação. "Por que sofro? Essa é a rocha do ateísmo" é dito na tragédia de Büchner "A morte de Danton". Sim, por que sofremos? Essa é a pergunta original do homem. Você, senhor Luik, sabe dar uma resposta?
O senhor, professor Küng, o senhor é o cristão crente. Eu espero ansiosamente a sua resposta.
Que não é fácil. Também pertence ao mistério por que os homens não fazem mais contra a dor. De todos os modos, não podem atribuir toda a culpa a Deus. A humanidade, justamente no "avançado" século XX, experimentou o mal em uma medida até então desconhecida: extermínios de Estado, Auschwitz, a industrialização do massacre. Como Deus pôde permitir isso? O mistério do sofrimento não pode ser explicado com os meios da razão.
Muito fácil.
Nem por meio da psicologia, nem por meio da filosofia, nem por meio da moral a escuridão do sofrimento se deixa transformar em luz. Deus permanece incompreensível.
Senhor Küng, além das palavras difíceis: o seu Deus estava em Auschwitz?
Palavras difíceis? Deus não é responsável pelo horror do holocausto. Certamente, se Deus existe - e eu acredito nisso -, então Deus estava também em Auschwitz.
Mas que Deus é esse que está em Auschwitz e não impede Auschwitz?
Esse é um grito de protesto que eu compreendo. E é minha convicção que a monstruosa realidade de Auschwitz não pode ser liquidada mesmo com ardentes especulações sobre um Deus que sofre. A isso se dedica uma teologia do silêncio. Mas até em Auschwitz a fé era possível: crentes de diversas religiões voltaram a Deus a sua oração até na fábrica da morte, porque estavam convencidos de que, apesar de tudo, Deus existia. E você, de sua parte, deve se perguntar: o seu ateísmo explica o holocausto? A sua falta de fé explica o mundo, consegue consolar quem está no sofrimento sem sentido? Não! Nenhum dos grandes espíritos da humanidade que eu li resolveu o problema original do sofrimento e do mal.
Mas nem o cristianismo que - é quase absurdo - fala do Deus bom, benévolo, indulgente. Um Deus que tudo sabe, que tudo guia.
Essa é uma representação medieval do Deus onipotente, que guia todos os eventos cósmicos.
Então eu estudei mal a religião!
Não. Deus é espírito, que age dentro, com e no meio dos homens, mas que respeita a sua liberdade. E essa liberdade também compreende inevitavelmente o mal. O homem que sofre não pode chegar ao segredo dos projetos do criador sobre o mundo. O sofrimento, enorme, insensato - tanto individual quanto coletivo - não pode ser compreendido teoricamente, mas, no melhor dos casos, superado praticamente. Os judeus - os cristãos também - têm, como sofrimento extremo, a figura de Jó diante dos olhos. Esse homem perde tudo, sem culpa alguma: o patrimônio, a família, a saúde, torna-se mendigo, é atingido pela lepra. Lamenta-se com Deus e rejeita todos os argumentos a favor de Deus. Com isso, mostra que o homem não necessariamente deve acolher o sofrimento. Ele tem o direito de insurgir, de protestar, de se rebelar contra um Deus que lhe parece cruel, pérfido e astuto - e por meio dessas provas, Jó reencontra Deus!
Isso é uma fábula.
Isso é literatura mundial altamente dramática. Mas ainda mais do que Jó, para mim, como cristão, é Jesus, aquele Jesus que é abandonado, flagelado, que é caçoado, que morre lentamente na cruz, aquele que participou da terrível experiência do holocausto.
Para o senhor, como cristão, essa morte é certamente uma morte salvífica que...
... que remete para além da miséria, da dor, da morte! Até para céticos como o marxista Horkheimer era insuportável acreditar que a miséria tivesse a última palavra. Deve haver uma última justiça justamente para os pobres, os miseráveis deste mundo! E as crianças que sofrem sem culpa podem ter o conforto de que essa vida não é tudo, mas que têm diante de si uma vida sem dor.
É o senhor mesmo quem diz: a fé é ópio.
Não, não é ópio. É conforto.
O senhor tem agora mais de 80 anos e...
... Estou consciente do fato de que o meu fim terreno está próximo. Antes eu pensava - a minha vida foi uma vida cansativa - que não chegaria aos 50 anos. Agora, faço as contas com a morte, cada hora pode ser a última. Quem tem a morte diante dos olhos todos os dias tem menos medo dela. Estou pronto. Vivi sete vidas. Não me permito nenhuma nostalgia de velhice, não me fixo espasmodicamente em querer ser jovem. Às vezes me perguntam: "Como gostaria de morrer?". Sorrindo, respondo: "Durante uma viagem de trabalho!". E então acrescento: "De todos os modos, não em uma casa de saúde".
O seu amigo, o professor de retórica Walter Jens, afundou-se em um mundo além do pensamento, além das palavras, está louco. Foi um defensor da ajuda ativa a morrer. Sua mulher Inge diz: "Não aproveitou o momento certo em que poderia passar da vida para a morte".
Para mim, a vida é um dom de Deus do qual sou responsável. E isso até o último suspiro. Está entregue à minha responsabilidade, e não à da Igreja, ou do Papa ou de um padre, de um médico, de um juiz. É minha responsabilidade, e, definitivamente, sou responsável da mais alta instância: Deus. Digo apenas que não gostaria de perder o momento certo.
O que espera do fim da vida?
Como disse, estou curioso. A morte é a primeira para todos. Tenho a fundada confiança de não cair no nada. "Isso é tudo", disse Kurt Tucholsky, que se tirou a vida em 1935. Ele escreveu: "Se tivesse que morrer agora, diria ´Isso é tudo?´ - e ´Não entendi muito bem´". E: "Foi um pouco barulhento". Mas não, eu não penso assim! Não é tudo. Eu acredito na vida eterna.
Walter Jens me dizia uma vez que encontraria com prazer Heinrich Böll e Willy Brandt lá em cima.
Naturalmente, eu também me encontraria com muito prazer com determinadas pessoas. De todos os modos, preferiria Mozart a Brandt, e gostaria de conhecer Thomas Morus. Mas o que eu sei? As fantasias não tem nada a ver com a seriedade do morrer.
E o que o senhor dirá a Deus, no caso de que exista, quando lhe perguntar: "O que fez para tornar o mundo melhor?".
Sei que ele não me fará essa pergunta, porque ele sabe disso sem perguntar.
(www.ihu.unisinos.br)
'Escrevo para as pessoas que estão em busca'
Entrevista com Hans Küng
Nesta longa entrevista à revista alemã Stern, o teólogo alemão Hans Küng é confrontado pelo entrevistador sobre suas convicções de fé e teológicas. Há 20 anos de ter sua "missio canonica" - a autorização para o ensino da teologia católica - sido revogada pela Congregação para a Doutrina da Fé, devido às suas críticas a João Paulo II, Küng encara também o tema da morte e avalia a sua trajetória de vida.
Teólogo Hans Küng. A reportagem é de Arno Luik, publicada na revista alemã Stern, 15-10-2009. A entrevista publicada em alemão, foi traduzida do italiano por Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Senhor Küng, tenho uma tia com 98 anos que tem um grave problema: ela tem certeza que vai para o paraíso e irá encontrar lá seu marido, filhos e conhecidos, mas se questiona em que estado estarão: jovens, velhos, doentes, sãos?
Entendo que a sua tia tenha tais preocupações. Não se sabe o que pode nos esperar além da porta da morte. Pessoalmente, não posso e não quero imaginar como é o paraíso. Toda pessoa gosta de imaginar, mas deve saber que são só suas imagens. Vivemos em uma época posterior a Copérnico e a Darwin - e portanto não podemos mais imaginar o paraíso como fizeram, por exemplo, Michelangelo e os pintores da Idade Média e do Barroco. Eu não acredito nessas representações simplistas do paraíso, segundo as quais ficaremos sentados em uma cadeirinha de ouro cantando "aleluia".
O Papa Bento XVI acredita seguramente que no além, de algum modo, todos estão sentados juntos. Há não muito tempo, ele dizia que seu antecessor, João Paulo II, estava escorado na sacada da casa do Senhor olhando-nos: então, há um morto que olha lá de cima.
Essa é uma representação surpreendentemente ingênua. O Papa se expressa às vezes de maneira pré-moderna e popular - uma herança da sua fé bávara agrícola. Naturalmente, ele também sabe que o paraíso não é uma casa em cima das nuvens com janelas do céu. Os cristãos iluminados entendem que, no além, nenhum cadáver é ressuscitado, mas que - como dizemos na liturgia - ocorre uma total transformação do modo de ser. Estou curioso para descobrir como será no além.
Senhor Küng, o senhor certamente está desiludido com a sua vida aqui na terra.
Como assim?
O senhor escreveu mais de 60 livros, mais de 30 mil páginas e...
Trabalho com muito prazer. Com toda a modéstia, acredito ter produzido algo que torna o cristianismo, a religião, a ética novamente compreensíveis ao homem moderno.
No entanto, o seu ardor...
Não fui e não sou um fanático, nem um santo. Escrevo para as pessoas que estão em busca.
Apesar do seu compromisso, desde 1989 as duas maiores Igrejas na Alemanha perderam mais de sete milhões de fiéis, e na oração das quartas-feiras em Roma participam anualmente dois milhões e meio de pessoas a menos com relação a alguns anos atrás com João Paulo II. O senhor consumiu seus dedos escrevendo, mas inutilmente.
Não. Tive êxito! Um número incalculável de pessoas me escreve - diariamente - que eu fui uma ajuda para elas. Eu me tornei, involuntariamente, um porta-voz da leal oposição à sua Santidade. Um porta-voz que é levado a sério - até pelo próprio Papa. Estou presente dentro e fora da Igreja. Sem mim, muitos teriam abandonado a Igreja. Muitos me dizem: "Enquanto o senhor resistir dentro da Igreja, eu também resisto".
No entanto, o senhor perdeu a sua batalha. O seu antagonista Ratzinger...
Não é o meu antagonista, e a minha profissão não é crítico do Papa. Sou um reformador, não um subversivo. E não suporto ser sempre chamado de rebelde da Igreja ou...
O seu antagonista se tornou Papa, entrou na história. O senhor será só uma nota de rodapé...
É um desrespeito o que você está dizendo. Você não pode ver o futuro, você...
Mas será assim!
Você acredita? Como uma pessoa entra na história só a própria pessoa decide. Não importa a função, nem o poder. Um exemplo: Tomás de Aquino - não quero me colocar à sua altura - renunciou voluntariamente a qualquer cargo importante na Igreja. O Papa Inocêncio III, seu contemporâneo cultíssimo, foi o mais poderoso de todos os papas. Você conhece Inocêncio III? Não. Esse papa, poderosíssimo em seu tempo, é uma nota de rodapé, mesmo que ainda importante para os historiadores. Mas Tomás de Aquino é constantemente citado ainda hoje como uma autoridade. Não, não me sinto um perdedor.
É claro que o senhor deve dizer e deve ver assim.
Certamente eu vejo assim! Mas há uma outra coisa que entristece na vida: que Joseph Ratzinger, que, em 1966, eu chamei para a Universidade de Tübingen, não continuou no mesmo caminho da reforma, como eu fiz. Então, provavelmente temos hoje essa divisão da Igreja católica entre Igreja alta e Igreja baixa. Eu represento a Igreja baixa; ele, a Igreja alta. Todo o meu trabalho estava voltado para que a Igreja alta mudasse. E nisso, e aqui você tem razão, eu tive só um sucesso limitado. Mas quem venceu uma batalha ainda está longe de ter vencido a guerra. Eu acredito que a atual política do Vaticano é um fiasco. A tentativa de empurrá-la novamente para trás, para a Idade Média, a esvazia. Não se pode trazer os velhos tempos de volta à vida!
Mas, diga-me, por que 200 anos depois do Iluminismo ainda se deveria acreditar em Deus?
Sim, justamente como iluminista, eu lhe digo: existem milhares de motivos para não acreditar.
Nisso o senhor tem razão.
Diante da miséria do mundo e da própria vida, pode-se duvidar de Deus ou confiar em Deus. Não há nenhuma prova estritamente científica a favor de Deus. A sua existência não pode ser fundamentada em argumentos logicamente convincentes. Justamente segundo Immanuel Kant: a razão pura teorética fora do tempo e do espaço não é competente. Por isso, a existência de Deus não pode ser baseada em argumentos logicamente convincentes.
Sério?!
Não brinque. Você certamente ainda tem em mente, de um lado, a sua fé de criança, mas, de outro lado, a sua razão também não tem competência na questão da fé. A existência de Deus é uma questão de confiança razoável.
Confiança razoável? Parece-me ser, pelo contrário, irrazoável, e acho que Mark Twain tinha razão: "A fé consiste em crer em algo que se sabe que não é verdade".
Exatamente uma péssima frase de espírito. Porém, eu lhe respondo muito seriamente com uma frase da Carta aos Hebreus: "A fé é fundamento das coisas que se esperam e prova daquelas que não se veem". Portanto, apesar das suas dúvidas há milhares de motivos pelos quais uma pessoa - apesar de todas as contrariedades da vida - pode acreditar em Deus.
Diga-me um.
Sobre isso, justamente, recém escrevi um livro inteiro: "Quello in cui credo" (Aquilo em que creio), em tradução livre). A fé é sobretudo um problema de confiança de fundo. Confiança na vida. Gostaria de convidá-lo a admitir Deus pelo menos como hipótese. Tome a questão filosófica mundial: por que uma coisa existe no lugar de não ser, ou a inexplicável origem das fundamentais constantes da natureza ou da velocidade da luz. Mas também o problema do infinito na matemática, os rastros da transcendência na música - tudo isso pode ser um convite a crer em Deus.
O cientista Richard Dawkins lhe responderia a essas palavras que ressoam tão belas...
... Eu diria, ao invés, que ressoam tão verdadeiras!
Ele diria: todas as religiões ensinam coisas sem sentido e são perigosas para a humanidade.
Não me fale aqui desses novos ateus! Dawkins é um ideólogo que reage a uma imagem de Deus superada e argumenta de modo extremamente polêmico, sem porém levar a novas consequências. É um estudioso de ciências naturais, sem abertura a problemas filosóficos. Eu me ocupei dos grandes ateus clássicos, analisei Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud. Eles constituem um desafio para mim, não esse...
"A religião", diz Marx, "é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, o espírito de situações sem espírito. É o ópio do povo. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória do povo é a condição necessária para a sua verdadeira felicidade: a condição necessária para renunciar às ilusões da sua situação, a condição necessária para renunciar a uma situação que precisa de ilusões".
Marx tem razão: a religião pode ser o ópio do povo. A religião pode ser um meio de aquietamento e consolação social. Mas não deve ser isso. As análises de Marx também expressam, talvez contra a sua vontade, algo positivo, isto é, que a religião pode ser muito mais - um protesto contra as condições que temos, protesto contra as circunstâncias por causa das quais sofremos.
Essa é a uma interpretação arriscada. "A crítica da religião", diz ainda Marx, "é o germe da crítica do vale de lágrimas do qual a religião é a auréola".
Religião só reverbera? Nisso, Marx - como Feuerbach - provoca um curto-circuito. A religião é mais do que uma projeção. Como a fé, a esperança e o amor, ela não se exaure só no fato de fazer suportar a miséria dos homens consciente ou resignadamente! Não, a religião pode ser um motivo excepcionalmente forte, como diz Marx, não só para interpretar o mundo de forma diferente, mas para mudá-lo.
Meu Deus, mas que mundo o seu Deus criou. Enquanto nós estamos aqui falando, crescem sem parar as montanhas de cadáveres. A cada cinco segundo uma criança com menos de 10 anos morre de fome ou de sede. Estamos falando de míseros trinta minutos - 360 crianças mortas!
Por que Deus não impediu o mal? O filósofo grego Epicuro já volta essa pergunta contra a religião no ano 300 a.C. Mas talvez devemos nos perguntar antes: por que os homens não impediram o mal? Com relação ao mal, toda pessoa que crê em um Deus bom e vivo é confrontado neste mundo a um mistério que...
O senhor chama de mistério a morte de crianças pela fome?
Não. O mistério é por que Deus não impediu o mal. A dor imerecida de crianças não pode ser justificada com nenhuma argumentação. "Por que sofro? Essa é a rocha do ateísmo" é dito na tragédia de Büchner "A morte de Danton". Sim, por que sofremos? Essa é a pergunta original do homem. Você, senhor Luik, sabe dar uma resposta?
O senhor, professor Küng, o senhor é o cristão crente. Eu espero ansiosamente a sua resposta.
Que não é fácil. Também pertence ao mistério por que os homens não fazem mais contra a dor. De todos os modos, não podem atribuir toda a culpa a Deus. A humanidade, justamente no "avançado" século XX, experimentou o mal em uma medida até então desconhecida: extermínios de Estado, Auschwitz, a industrialização do massacre. Como Deus pôde permitir isso? O mistério do sofrimento não pode ser explicado com os meios da razão.
Muito fácil.
Nem por meio da psicologia, nem por meio da filosofia, nem por meio da moral a escuridão do sofrimento se deixa transformar em luz. Deus permanece incompreensível.
Senhor Küng, além das palavras difíceis: o seu Deus estava em Auschwitz?
Palavras difíceis? Deus não é responsável pelo horror do holocausto. Certamente, se Deus existe - e eu acredito nisso -, então Deus estava também em Auschwitz.
Mas que Deus é esse que está em Auschwitz e não impede Auschwitz?
Esse é um grito de protesto que eu compreendo. E é minha convicção que a monstruosa realidade de Auschwitz não pode ser liquidada mesmo com ardentes especulações sobre um Deus que sofre. A isso se dedica uma teologia do silêncio. Mas até em Auschwitz a fé era possível: crentes de diversas religiões voltaram a Deus a sua oração até na fábrica da morte, porque estavam convencidos de que, apesar de tudo, Deus existia. E você, de sua parte, deve se perguntar: o seu ateísmo explica o holocausto? A sua falta de fé explica o mundo, consegue consolar quem está no sofrimento sem sentido? Não! Nenhum dos grandes espíritos da humanidade que eu li resolveu o problema original do sofrimento e do mal.
Mas nem o cristianismo que - é quase absurdo - fala do Deus bom, benévolo, indulgente. Um Deus que tudo sabe, que tudo guia.
Essa é uma representação medieval do Deus onipotente, que guia todos os eventos cósmicos.
Então eu estudei mal a religião!
Não. Deus é espírito, que age dentro, com e no meio dos homens, mas que respeita a sua liberdade. E essa liberdade também compreende inevitavelmente o mal. O homem que sofre não pode chegar ao segredo dos projetos do criador sobre o mundo. O sofrimento, enorme, insensato - tanto individual quanto coletivo - não pode ser compreendido teoricamente, mas, no melhor dos casos, superado praticamente. Os judeus - os cristãos também - têm, como sofrimento extremo, a figura de Jó diante dos olhos. Esse homem perde tudo, sem culpa alguma: o patrimônio, a família, a saúde, torna-se mendigo, é atingido pela lepra. Lamenta-se com Deus e rejeita todos os argumentos a favor de Deus. Com isso, mostra que o homem não necessariamente deve acolher o sofrimento. Ele tem o direito de insurgir, de protestar, de se rebelar contra um Deus que lhe parece cruel, pérfido e astuto - e por meio dessas provas, Jó reencontra Deus!
Isso é uma fábula.
Isso é literatura mundial altamente dramática. Mas ainda mais do que Jó, para mim, como cristão, é Jesus, aquele Jesus que é abandonado, flagelado, que é caçoado, que morre lentamente na cruz, aquele que participou da terrível experiência do holocausto.
Para o senhor, como cristão, essa morte é certamente uma morte salvífica que...
... que remete para além da miséria, da dor, da morte! Até para céticos como o marxista Horkheimer era insuportável acreditar que a miséria tivesse a última palavra. Deve haver uma última justiça justamente para os pobres, os miseráveis deste mundo! E as crianças que sofrem sem culpa podem ter o conforto de que essa vida não é tudo, mas que têm diante de si uma vida sem dor.
É o senhor mesmo quem diz: a fé é ópio.
Não, não é ópio. É conforto.
O senhor tem agora mais de 80 anos e...
... Estou consciente do fato de que o meu fim terreno está próximo. Antes eu pensava - a minha vida foi uma vida cansativa - que não chegaria aos 50 anos. Agora, faço as contas com a morte, cada hora pode ser a última. Quem tem a morte diante dos olhos todos os dias tem menos medo dela. Estou pronto. Vivi sete vidas. Não me permito nenhuma nostalgia de velhice, não me fixo espasmodicamente em querer ser jovem. Às vezes me perguntam: "Como gostaria de morrer?". Sorrindo, respondo: "Durante uma viagem de trabalho!". E então acrescento: "De todos os modos, não em uma casa de saúde".
O seu amigo, o professor de retórica Walter Jens, afundou-se em um mundo além do pensamento, além das palavras, está louco. Foi um defensor da ajuda ativa a morrer. Sua mulher Inge diz: "Não aproveitou o momento certo em que poderia passar da vida para a morte".
Para mim, a vida é um dom de Deus do qual sou responsável. E isso até o último suspiro. Está entregue à minha responsabilidade, e não à da Igreja, ou do Papa ou de um padre, de um médico, de um juiz. É minha responsabilidade, e, definitivamente, sou responsável da mais alta instância: Deus. Digo apenas que não gostaria de perder o momento certo.
O que espera do fim da vida?
Como disse, estou curioso. A morte é a primeira para todos. Tenho a fundada confiança de não cair no nada. "Isso é tudo", disse Kurt Tucholsky, que se tirou a vida em 1935. Ele escreveu: "Se tivesse que morrer agora, diria ´Isso é tudo?´ - e ´Não entendi muito bem´". E: "Foi um pouco barulhento". Mas não, eu não penso assim! Não é tudo. Eu acredito na vida eterna.
Walter Jens me dizia uma vez que encontraria com prazer Heinrich Böll e Willy Brandt lá em cima.
Naturalmente, eu também me encontraria com muito prazer com determinadas pessoas. De todos os modos, preferiria Mozart a Brandt, e gostaria de conhecer Thomas Morus. Mas o que eu sei? As fantasias não tem nada a ver com a seriedade do morrer.
E o que o senhor dirá a Deus, no caso de que exista, quando lhe perguntar: "O que fez para tornar o mundo melhor?".
Sei que ele não me fará essa pergunta, porque ele sabe disso sem perguntar.
(www.ihu.unisinos.br)
Rev. Simonton: "Mochila nas costas e diário nas mãos".
Simonton: um pioneiro do Evangelho
Robinson Cavalcanti
Mochila nas Costas e Diário na Mão – a fascinante história de Ashbel Green Simonton, é o novo livro de autoria do Rev. Elben M. Lenz César, diretor da revista Ultimato, publicado dentro da programação comemorativa dos 150 anos do Presbiterianismo no Brasil. Esta obra é uma biografia do pioneiro daquele ramo reformado em nosso país, à base, principalmente, do seu diário. Na contracapa encontramos um bom resumo da vida de Simonton: “Ele organizou o primeiro jornal protestante da América do Sul (1864), a primeira escola paroquial (1866), o primeiro seminário (1867) e ordenou o primeiro pastor brasileiro (1865). Desembarcou no Rio de Janeiro em 1859 e morreu de febre amarela em São Paulo, aos 34 anos, em 1867. Uma vida breve, que mudou a história”.
Embora as igrejas protestantes de imigrantes (anglicanas e luteranas) já estivessem estabelecidas entre nós durante os períodos do Reino Unido e do Primeiro Reinado, é na segunda metade do século 19 (Segundo Reinado e Primeira República) que aportaram aqui os pioneiros do protestantismo de missão aos brasileiros, e em língua portuguesa:
1. Igreja Congregacional: Rev. Robert Reid Kalley – 1855;
2. Igreja Presbiteriana: Rev. Ashbel Green Simonton – 1859;
3. Igreja Metodista: Rev. Junius E. Newman – 1867;
4. Igreja Batista: Reverendos William Buck Bagby e Zacarias Clay Taylor;
5. Igreja Episcopal (Anglicana): Reverendos Lucien Lee Kinsolving (primeiro bispo) e James Watson Morris – 1890.
Esses cinco ramos reformados foram os únicos entre 1855 e 1909, conseguindo se expandir nacionalmente, sob as restrições legais da Constituição Imperial, de 1824, e sob a severa perseguição social durante o período republicano (após 1889). Há textos sobre esse primeiro período de cada igreja e de seus pioneiros. Um livro recomendado para a segunda metade do século 19 é o clássico “Protestantismo, Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil”, de David Gueiros Vieira.
A primeira metade do século 20 presenciou a expansão do protestantismo histórico, de suas igrejas e suas instituições, bem como a chegada do pentecostalismo e dos “corpos de santidade”. Vale destacar:
1. Congregação Cristã do Brasil: Louis Francescon – 1909;
2. Assembléia de Deus: Gunnar Vingren e Daniel Berg – 1910;
3. Exército da Salvação: David Miche – 1922;
4. Igreja do Evangelho Quadrangular: Harold Williams – 1946.
Essa é a época da criação da Associação das Escolas Bíblicas Dominicais e da Confederação Evangélica do Brasil (CEB). Um texto recomendado é “Protestantismo no Brasil”, de Emile Leonard. Há pesquisas sobre pioneiros regionais muito interessantes, como “A Bíblia e o Bisturi”, do Rev. Edjéce Martins, sobre os missionários médicos George Butler, pai e filho, que, a partir da pequena cidade de Canhotinho, PE, irradiaram o presbiterianismo pela região agreste desse estado. Uma análise sobre a missiologia evangelical e ecumênica é o trabalho de Luis Longuini Neto.
Essa história, tão rica, do protestantismo no Brasil, não se resume a nomes e datas, para a implantação de igrejas e instituições e a elaboração de um pensamento, a partir da herança de cada ramo reformado e de sua inserção em nossa cultura luso-afro-ameríndia.
A crise do protestantismo hoje passa pela ignorância e pela rejeição do legado do passado, bem como pela desvalorização da cultura nacional, o que concorre para a irrelevância e a não “inculturação”, a despeito do crescimento quantitativo. Seminários sem as disciplinas de cultura brasileira e teologia latino-americana, e líderes que não conhecem a nossa literatura, nem as clássicas obras interpretativas do Brasil, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Florestan Fernandes e Raymundo Faoro, entre tantos outros, não nos conduzirão a lugar algum.
Embora haja um setor que procura resgatar e atualizar a história e a identidade evangélica em sua brasilidade, o presentismo e o anglosaxonismo (como novo “helenismo”) crescem em duas vertentes:
- a neo(pseudo)pentecostal da prosperidade e batalha espiritual;
- a macetista, das últimas novidades pragmáticas de origem forânea.
Seja a alienação com ênfase no mundo além túmulo e além história (escatologia), seja o sectarismo moralista, seja a criação de bolhas locais personalistas promotoras da salvação das almas mais educação moral e cívica pequeno-burguesa, estaremos naquela de uma estrada que leva do nada a coisa nenhuma.
Ler biografias como a de Simonton, e conhecer experiências regionais, que terminaram no estabelecimento de convenções, presbitérios, sínodos, dioceses, regiões, distritos ou qualquer outra nomenclatura, é saber que é possível fazer história, construir instituições e elaborar ideários. Tem sido assim por dois mil anos quando há convicção, identidade, compromisso e ética.
Daí a procura, nos doze anos passados, por implantar o episcopado e uma diocese anglicana no nordeste do Brasil. Não tinha nada de utopia. Era um projeto plenamente possível se os seus atores – como tantos outros no passado – tivessem agido de boa fé.
Reconhecer porque isso não ocorreu, e como poderia ter ocorrido, é imprescindível para que não venha outra vez a ocorrer. Para avançarmos para o futuro, deixando para trás o passado, não podemos varrer o mal para debaixo do tapete ou sermos paralisados por eternas “gratidões afetivas”. Temos que dar nomes aos bois, explicitando a tragédia dos pecados dos cismas, das heresias e dos projetos personalistas.
Se Simonton tivesse vivido a conjuntura dos anglicanos e “anglicanos” no Nordeste do Brasil nos anos recentes, sua história e o seu legado teriam sido bem diferentes.
Para construir a história é preciso aprender com ela, se queremos chegar a algum lugar.
• Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política -- teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo -- desafios a uma fé engajada.
www.dar.org.br
Fonte: revista ultimato
Robinson Cavalcanti
Mochila nas Costas e Diário na Mão – a fascinante história de Ashbel Green Simonton, é o novo livro de autoria do Rev. Elben M. Lenz César, diretor da revista Ultimato, publicado dentro da programação comemorativa dos 150 anos do Presbiterianismo no Brasil. Esta obra é uma biografia do pioneiro daquele ramo reformado em nosso país, à base, principalmente, do seu diário. Na contracapa encontramos um bom resumo da vida de Simonton: “Ele organizou o primeiro jornal protestante da América do Sul (1864), a primeira escola paroquial (1866), o primeiro seminário (1867) e ordenou o primeiro pastor brasileiro (1865). Desembarcou no Rio de Janeiro em 1859 e morreu de febre amarela em São Paulo, aos 34 anos, em 1867. Uma vida breve, que mudou a história”.
Embora as igrejas protestantes de imigrantes (anglicanas e luteranas) já estivessem estabelecidas entre nós durante os períodos do Reino Unido e do Primeiro Reinado, é na segunda metade do século 19 (Segundo Reinado e Primeira República) que aportaram aqui os pioneiros do protestantismo de missão aos brasileiros, e em língua portuguesa:
1. Igreja Congregacional: Rev. Robert Reid Kalley – 1855;
2. Igreja Presbiteriana: Rev. Ashbel Green Simonton – 1859;
3. Igreja Metodista: Rev. Junius E. Newman – 1867;
4. Igreja Batista: Reverendos William Buck Bagby e Zacarias Clay Taylor;
5. Igreja Episcopal (Anglicana): Reverendos Lucien Lee Kinsolving (primeiro bispo) e James Watson Morris – 1890.
Esses cinco ramos reformados foram os únicos entre 1855 e 1909, conseguindo se expandir nacionalmente, sob as restrições legais da Constituição Imperial, de 1824, e sob a severa perseguição social durante o período republicano (após 1889). Há textos sobre esse primeiro período de cada igreja e de seus pioneiros. Um livro recomendado para a segunda metade do século 19 é o clássico “Protestantismo, Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil”, de David Gueiros Vieira.
A primeira metade do século 20 presenciou a expansão do protestantismo histórico, de suas igrejas e suas instituições, bem como a chegada do pentecostalismo e dos “corpos de santidade”. Vale destacar:
1. Congregação Cristã do Brasil: Louis Francescon – 1909;
2. Assembléia de Deus: Gunnar Vingren e Daniel Berg – 1910;
3. Exército da Salvação: David Miche – 1922;
4. Igreja do Evangelho Quadrangular: Harold Williams – 1946.
Essa é a época da criação da Associação das Escolas Bíblicas Dominicais e da Confederação Evangélica do Brasil (CEB). Um texto recomendado é “Protestantismo no Brasil”, de Emile Leonard. Há pesquisas sobre pioneiros regionais muito interessantes, como “A Bíblia e o Bisturi”, do Rev. Edjéce Martins, sobre os missionários médicos George Butler, pai e filho, que, a partir da pequena cidade de Canhotinho, PE, irradiaram o presbiterianismo pela região agreste desse estado. Uma análise sobre a missiologia evangelical e ecumênica é o trabalho de Luis Longuini Neto.
Essa história, tão rica, do protestantismo no Brasil, não se resume a nomes e datas, para a implantação de igrejas e instituições e a elaboração de um pensamento, a partir da herança de cada ramo reformado e de sua inserção em nossa cultura luso-afro-ameríndia.
A crise do protestantismo hoje passa pela ignorância e pela rejeição do legado do passado, bem como pela desvalorização da cultura nacional, o que concorre para a irrelevância e a não “inculturação”, a despeito do crescimento quantitativo. Seminários sem as disciplinas de cultura brasileira e teologia latino-americana, e líderes que não conhecem a nossa literatura, nem as clássicas obras interpretativas do Brasil, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Florestan Fernandes e Raymundo Faoro, entre tantos outros, não nos conduzirão a lugar algum.
Embora haja um setor que procura resgatar e atualizar a história e a identidade evangélica em sua brasilidade, o presentismo e o anglosaxonismo (como novo “helenismo”) crescem em duas vertentes:
- a neo(pseudo)pentecostal da prosperidade e batalha espiritual;
- a macetista, das últimas novidades pragmáticas de origem forânea.
Seja a alienação com ênfase no mundo além túmulo e além história (escatologia), seja o sectarismo moralista, seja a criação de bolhas locais personalistas promotoras da salvação das almas mais educação moral e cívica pequeno-burguesa, estaremos naquela de uma estrada que leva do nada a coisa nenhuma.
Ler biografias como a de Simonton, e conhecer experiências regionais, que terminaram no estabelecimento de convenções, presbitérios, sínodos, dioceses, regiões, distritos ou qualquer outra nomenclatura, é saber que é possível fazer história, construir instituições e elaborar ideários. Tem sido assim por dois mil anos quando há convicção, identidade, compromisso e ética.
Daí a procura, nos doze anos passados, por implantar o episcopado e uma diocese anglicana no nordeste do Brasil. Não tinha nada de utopia. Era um projeto plenamente possível se os seus atores – como tantos outros no passado – tivessem agido de boa fé.
Reconhecer porque isso não ocorreu, e como poderia ter ocorrido, é imprescindível para que não venha outra vez a ocorrer. Para avançarmos para o futuro, deixando para trás o passado, não podemos varrer o mal para debaixo do tapete ou sermos paralisados por eternas “gratidões afetivas”. Temos que dar nomes aos bois, explicitando a tragédia dos pecados dos cismas, das heresias e dos projetos personalistas.
Se Simonton tivesse vivido a conjuntura dos anglicanos e “anglicanos” no Nordeste do Brasil nos anos recentes, sua história e o seu legado teriam sido bem diferentes.
Para construir a história é preciso aprender com ela, se queremos chegar a algum lugar.
• Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política -- teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo -- desafios a uma fé engajada.
www.dar.org.br
Fonte: revista ultimato
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
Ressurreição da alegria
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
Um lampejo da graça
Ricardo Gondim
Não nasci quebrado, não herdei o pecado de Adão, não aprendi a andar debaixo da maldição divina. Em meus primeiros tropeços não exalei um mau cheiro de perversidade. Minha infância foi leve, moleca, solta. Reparti o pão singelo com outros cinco irmãos. Ao lado do vovô, escutei o rádio. Buscávamos notícias da BBC de Londres, da Agência de Notícias de Moscou, dos exilados que moravam na Suécia - Com papai preso, precisávamos furar o cerco da censura.
Mas ainda na adolescência me ensinaram que eu era ruim. E que a mão de Deus estava prestes a pesar sobre minha cabeça. Eu deveria acordar; a qualquer instante poderia morrer e queimar eternamente no inferno. Ainda não consigo avaliar o impacto de tamanho pavor na cabeça de um garoto, mesmo passados tantos anos. Sei tão somente que abracei uma espiritualidade calcada no terror.
Alguém colocou um espelho na minha frente e me disse que eu deveria ver torpeza em meus olhos tristes. Arqueei as sobrancelhas; realmente acreditei que não prestava. Daí para frente, orei inúmeras vezes pedindo que Deus perdoasse uma “multidão de pecados”. Internalizei todos esses medos e adiei a vida.
Minha religião se construiu no negativo. Eu me contentava em cultuar a Deus para celebrar apenas a sua misericórdia. Mas antes de mencionar misericórdia, deixava claro a etimologia latina, miserere e cordis. Depois ressaltava: Deus volta seu coração para nós, eternos miseráveis. Enchia a boca: Miseráveis! Para mim a função do culto se resumia nisso, pedir perdão, quitar as dívidas com a lei moral e prometer que daquele dia em diante tudo seria diferente. Na semana seguinte, obviamente, tendo tropeçado nos cadarços de minha condição humana, voltava à estaca zero. E assim de multidão de pecados em multidão de pecados, sofregamente, esperava que Deus não se zangasse comigo além da conta.
Tardiamente despertei. Eu havia internalizado a mensagem. Era um homem quebrado, contaminado pela desobediência de Adão e irremediavelmente torto. Adoecido, tratava qualquer virtude como trapo de imundície. Meu corpo, propenso à lascívia, me tornava um ímpio (perdoado, mas ímpio) sempre a um passo de voltar à lama.
Alegria? Só muito comedida, “para não dar lugar à carne”. Satisfação? Nos cultos, obviamente. Prazer? Poucos: comer e dormir - prazer sexual, “quando casar”. Minha vida se estreitou. Deixei de ouvir boa música, não me permiti ler romances e passei ao largo da poesia. Catalogaram tantas coisas como abomináveis que eu preferia não me aproximar dessa lista maligna, que condenaria minha alma à perdição eterna.
Há pouco, fui criticado porque vibrei com a saudosa Mercedes Sosa em um show monumental em São Paulo. Disseram que eu agi como um infantil, deslumbrado com um espetáculo vulgar. Não me indignei com os comentários. De fato sou um meninão. Gaguejo diante da lindeza e alucino com a ressurreição de uma alegria que me foi proibida.
Na longa estrada da existência, a vida é breve. Já confessei que não me considero competente para boxear com ilustrados teólogos. Não, minto, na verdade, não quero estar perto deles porque meu coração tem outras sedes. Almejo aprender a joeirar os restolhos da vida e encontrar pepitas de uma beleza comum. Pretendo alongar a vista por cima da cerca de meus preconceitos, regionalismos e intolerâncias. Procuro retardar o relógio e ler os autores que antigamente suspeitei.
Fiz as pazes com Deus. Minha espiritualidade saiu do coibitivo e agora celebra a vida. Sinto-me livre, mesmo inadequado. Não regurgito remorsos e não me chafurdo em falsas culpas. Celebro a minha humanidade sem as ameaças do fogo do inferno. Ainda não esgotei, mas já entendo algumas nuanças da graça.
Soli Deo Gloria
Fonte: Ricardo Gondin Via: emeurgência
Um lampejo da graça
Ricardo Gondim
Não nasci quebrado, não herdei o pecado de Adão, não aprendi a andar debaixo da maldição divina. Em meus primeiros tropeços não exalei um mau cheiro de perversidade. Minha infância foi leve, moleca, solta. Reparti o pão singelo com outros cinco irmãos. Ao lado do vovô, escutei o rádio. Buscávamos notícias da BBC de Londres, da Agência de Notícias de Moscou, dos exilados que moravam na Suécia - Com papai preso, precisávamos furar o cerco da censura.
Mas ainda na adolescência me ensinaram que eu era ruim. E que a mão de Deus estava prestes a pesar sobre minha cabeça. Eu deveria acordar; a qualquer instante poderia morrer e queimar eternamente no inferno. Ainda não consigo avaliar o impacto de tamanho pavor na cabeça de um garoto, mesmo passados tantos anos. Sei tão somente que abracei uma espiritualidade calcada no terror.
Alguém colocou um espelho na minha frente e me disse que eu deveria ver torpeza em meus olhos tristes. Arqueei as sobrancelhas; realmente acreditei que não prestava. Daí para frente, orei inúmeras vezes pedindo que Deus perdoasse uma “multidão de pecados”. Internalizei todos esses medos e adiei a vida.
Minha religião se construiu no negativo. Eu me contentava em cultuar a Deus para celebrar apenas a sua misericórdia. Mas antes de mencionar misericórdia, deixava claro a etimologia latina, miserere e cordis. Depois ressaltava: Deus volta seu coração para nós, eternos miseráveis. Enchia a boca: Miseráveis! Para mim a função do culto se resumia nisso, pedir perdão, quitar as dívidas com a lei moral e prometer que daquele dia em diante tudo seria diferente. Na semana seguinte, obviamente, tendo tropeçado nos cadarços de minha condição humana, voltava à estaca zero. E assim de multidão de pecados em multidão de pecados, sofregamente, esperava que Deus não se zangasse comigo além da conta.
Tardiamente despertei. Eu havia internalizado a mensagem. Era um homem quebrado, contaminado pela desobediência de Adão e irremediavelmente torto. Adoecido, tratava qualquer virtude como trapo de imundície. Meu corpo, propenso à lascívia, me tornava um ímpio (perdoado, mas ímpio) sempre a um passo de voltar à lama.
Alegria? Só muito comedida, “para não dar lugar à carne”. Satisfação? Nos cultos, obviamente. Prazer? Poucos: comer e dormir - prazer sexual, “quando casar”. Minha vida se estreitou. Deixei de ouvir boa música, não me permiti ler romances e passei ao largo da poesia. Catalogaram tantas coisas como abomináveis que eu preferia não me aproximar dessa lista maligna, que condenaria minha alma à perdição eterna.
Há pouco, fui criticado porque vibrei com a saudosa Mercedes Sosa em um show monumental em São Paulo. Disseram que eu agi como um infantil, deslumbrado com um espetáculo vulgar. Não me indignei com os comentários. De fato sou um meninão. Gaguejo diante da lindeza e alucino com a ressurreição de uma alegria que me foi proibida.
Na longa estrada da existência, a vida é breve. Já confessei que não me considero competente para boxear com ilustrados teólogos. Não, minto, na verdade, não quero estar perto deles porque meu coração tem outras sedes. Almejo aprender a joeirar os restolhos da vida e encontrar pepitas de uma beleza comum. Pretendo alongar a vista por cima da cerca de meus preconceitos, regionalismos e intolerâncias. Procuro retardar o relógio e ler os autores que antigamente suspeitei.
Fiz as pazes com Deus. Minha espiritualidade saiu do coibitivo e agora celebra a vida. Sinto-me livre, mesmo inadequado. Não regurgito remorsos e não me chafurdo em falsas culpas. Celebro a minha humanidade sem as ameaças do fogo do inferno. Ainda não esgotei, mas já entendo algumas nuanças da graça.
Soli Deo Gloria
Fonte: Ricardo Gondin Via: emeurgência
Deus livre, gratuito e libertário
Mapeando o Deus que não faz barganhas
Paulo Brabo
baciadasalmas.com
Posted: 11 Nov 2009 04:12 AM PST
Falar é interpretar, escrever é ler, e todo vocabulário contém em si sua própria mitologia1. Na literatura recente e emergente de espiritualidade cristã, um dos modos mais populares de se descrever a postura divina está na idéia de que – para usar a expressão do modo como a uso sempre (por exemplo, aqui e aqui) – Deus não faz barganhas.
Quem interpreta a coisa dessa forma enxerga com dardejante clareza que, como apresentado na Bíblia (ou, pelo menos, nos evangelhos), o Deus da Bíblia (em contraposição ao mais inofensivo – e, digamos, mais pagão – Deus do cristianismo institucional) absolutamente não se dobra barganhas: não as oferece, não as estimula e, no fim das contas, não as aceita.
Esta, que eu saiba, é uma leitura muito recente do texto bíblico. Pode ter espreitado desde sempre, em regime potencial, nas páginas da Bíblia; pode ser uma leitura acurada,«Não há privilégios, não há abatimentos e não há desculpas no reino do céu.» coerente e no fim das contas muito natural, mas penso só ter sido articulada com a devida contundência em tempos recentes. Na verdade, pode ser que tenha sido apenas recentemente que a humanidade tenha adquirido as ferramentas necessárias para apreender este aspecto da revelação na inteireza de seu caráter revolucionário e desconcertante beleza. A noção de um Deus que não faz barganhas encontra muita ressonância na cínica e generosa cosmovisão pós-moderna, pois propõe ou demonstra uma divindade inclusiva e subversiva, inteiramente à margem das estruturas e sistemas usuais de poder. Fala de um Deus livre, gratuito e libertário: free as in beer, free as in freedom.
Um dos maiores campeões contemporâneos desta leitura do Deus cristão e de sua Bíblia é o insubmisso Brennan Manning, que em provocações como O Evangelho Maltrapilho propõe aos seus ouvintes um retorno radical à mais radical das idéias cristãs: a da graça pura, simples (”e sem gelo”) – aquela que não requer nada em troca e por isso abomina e exclui qualquer mecanismo de retribuição, negociação, crédito ou descrédito.
No Brasil, provavelmente ninguém trabalhou mais para divulgar esta singela revolução do que o sempre incandescente reverendo Caio Fábio. Um de seus livros mais populares,«Todos que acolhe em seu reino Deus serve da mesma forma.» escrito em 2002 mas que recupera idéias de obras anteriores, chama-se precisamente Sem barganhas com Deus. O evangelho, explica Caio Fábio, existe para denunciar e reverter a Teologia Moral de Causa e Efeito, que permanece sendo, em última análise, a teologia da igreja cristã – “uma quase-graça que, não sendo totalmente-graça, é des-graça”. E, dizendo isso, o brasileiro Caio Fábio ecoa sem ruído o norte-americano Manning: “Dito sem rodeios: a igreja evangélica dos nossos dias aceita a graça na teoria, mas nega-a na prática. Dizemos acreditar que a estrutura mais fundamental da realidade é a graça, não as obras – mas nossa vida refuta a nossa fé”.
Se digo tudo isso é para fazer uma confissão e para dar um testemunho.
A confissão é que embora endosse a idéia como se fosse minha e tenha me tornado praticamente incapaz de ler a Bíblia sem que seja através da sua lente, não cheguei por mim mesmo à noção do Deus que não faz barganhas.
O testemunho é que não foram Caio Fábio ou Brennan Mannigan que me conduziram a ela, mas – mais uma vez – a prosa lúcida do agnóstico H. G. Wells. Em outro trecho de sua Breve História do Tempo (1922), que segue ao parágrafo que citei anteriormente, Wells segue expondo sua visão sobre as impensáveis demandas do ensino de Jesus:
Os judeus estavam persuadidos de que Deus, o único Deus do mundo inteiro, era um Deus justo – mas achavam também que fosse um Deus negociador, que fizera acerca deles uma barganha com seu patriarca Abraão (uma barganha na verdade muito favorável para eles), de alçá-los por fim à supremacia sobre a terra. Com horror e ódio eles ouviram Jesus varrendo para longe essas suas acalentadas seguranças. Deus, ensinava ele, não fazia barganhas; não havia povo escolhido nem favoritos no reino do céu. Deus era o pai amoroso de toda a vida, tão incapaz de demonstrar favoritismo quanto o universal sol.
Todos os homens eram irmãos – tanto os pecadores quanto os filhos amados – desse divino pai. Na parábola do bom samaritano Jesus lança seu escárnio contra nossa tendência natural a glorificar nossa própria gente e minimizar a virtude dos povos de outros credos e raças. Na parábola dos trabalhadores ele rejeita a pretensão obstinada dos judeus de possuírem um crédito especial diante de Deus. Todos que Deus acolhe em seu reino, ensinava ele, Deus serve da mesma forma; não há distinção no seu tratamento, porque não há medida para sua liberalidade. De todos, além disso – como dá testemunho a parábola dos talentos e reforça o episódio da moeda da viúva, – ele exige o absoluto máximo. Não há privilégios, não há abatimentos e não há desculpas no reino do céu.
Porém não era apenas o patriotismo tribal dos judeus que Jesus ultrajava. Os judeus eram um povo que valorizava intensamente a lealdade familiar, e Jesus queria que a estreiteza das restritas afeições familiares fosse levada de arrasto pela grande torrente do amor de Deus. Para os seus seguidores, “família” deveria ser o reino do céu inteiro.
Jesus não se contentava ainda em investir contra o patriotismo e contra os laços de família em nome da paternidade universal de Deus e da irmandade de toda a humanidade; fica claro que seu ensino condenava também todas as gradações do sistema econômico, toda a riqueza privada e todas as vantagens pessoais. Todos os homens pertenciam ao reino; todas as suas posses pertenciam ao reino; o modo de vida íntegro para todos os homens, o único modo de vida íntegro, era o serviço de Deus com tudo que temos, com tudo que somos – pelo que, vez após outra, Jesus denunciava as riquezas privadas e as reservas de qualquer vida privada.
Finalmente, em sua tremenda profetização desse reino que consistia em todos os homens unidos em Deus, Jesus reservava pouca paciência para com a integridade de barganha da religião formal. Uma porção significativa de suas palavras registradas nos evangelhos está dirigida contra a meticulosa observância de regras por parte dos seguidores da piedosa carreira.
Paulo Brabo
baciadasalmas.com
Posted: 11 Nov 2009 04:12 AM PST
Falar é interpretar, escrever é ler, e todo vocabulário contém em si sua própria mitologia1. Na literatura recente e emergente de espiritualidade cristã, um dos modos mais populares de se descrever a postura divina está na idéia de que – para usar a expressão do modo como a uso sempre (por exemplo, aqui e aqui) – Deus não faz barganhas.
Quem interpreta a coisa dessa forma enxerga com dardejante clareza que, como apresentado na Bíblia (ou, pelo menos, nos evangelhos), o Deus da Bíblia (em contraposição ao mais inofensivo – e, digamos, mais pagão – Deus do cristianismo institucional) absolutamente não se dobra barganhas: não as oferece, não as estimula e, no fim das contas, não as aceita.
Esta, que eu saiba, é uma leitura muito recente do texto bíblico. Pode ter espreitado desde sempre, em regime potencial, nas páginas da Bíblia; pode ser uma leitura acurada,«Não há privilégios, não há abatimentos e não há desculpas no reino do céu.» coerente e no fim das contas muito natural, mas penso só ter sido articulada com a devida contundência em tempos recentes. Na verdade, pode ser que tenha sido apenas recentemente que a humanidade tenha adquirido as ferramentas necessárias para apreender este aspecto da revelação na inteireza de seu caráter revolucionário e desconcertante beleza. A noção de um Deus que não faz barganhas encontra muita ressonância na cínica e generosa cosmovisão pós-moderna, pois propõe ou demonstra uma divindade inclusiva e subversiva, inteiramente à margem das estruturas e sistemas usuais de poder. Fala de um Deus livre, gratuito e libertário: free as in beer, free as in freedom.
Um dos maiores campeões contemporâneos desta leitura do Deus cristão e de sua Bíblia é o insubmisso Brennan Manning, que em provocações como O Evangelho Maltrapilho propõe aos seus ouvintes um retorno radical à mais radical das idéias cristãs: a da graça pura, simples (”e sem gelo”) – aquela que não requer nada em troca e por isso abomina e exclui qualquer mecanismo de retribuição, negociação, crédito ou descrédito.
No Brasil, provavelmente ninguém trabalhou mais para divulgar esta singela revolução do que o sempre incandescente reverendo Caio Fábio. Um de seus livros mais populares,«Todos que acolhe em seu reino Deus serve da mesma forma.» escrito em 2002 mas que recupera idéias de obras anteriores, chama-se precisamente Sem barganhas com Deus. O evangelho, explica Caio Fábio, existe para denunciar e reverter a Teologia Moral de Causa e Efeito, que permanece sendo, em última análise, a teologia da igreja cristã – “uma quase-graça que, não sendo totalmente-graça, é des-graça”. E, dizendo isso, o brasileiro Caio Fábio ecoa sem ruído o norte-americano Manning: “Dito sem rodeios: a igreja evangélica dos nossos dias aceita a graça na teoria, mas nega-a na prática. Dizemos acreditar que a estrutura mais fundamental da realidade é a graça, não as obras – mas nossa vida refuta a nossa fé”.
Se digo tudo isso é para fazer uma confissão e para dar um testemunho.
A confissão é que embora endosse a idéia como se fosse minha e tenha me tornado praticamente incapaz de ler a Bíblia sem que seja através da sua lente, não cheguei por mim mesmo à noção do Deus que não faz barganhas.
O testemunho é que não foram Caio Fábio ou Brennan Mannigan que me conduziram a ela, mas – mais uma vez – a prosa lúcida do agnóstico H. G. Wells. Em outro trecho de sua Breve História do Tempo (1922), que segue ao parágrafo que citei anteriormente, Wells segue expondo sua visão sobre as impensáveis demandas do ensino de Jesus:
Os judeus estavam persuadidos de que Deus, o único Deus do mundo inteiro, era um Deus justo – mas achavam também que fosse um Deus negociador, que fizera acerca deles uma barganha com seu patriarca Abraão (uma barganha na verdade muito favorável para eles), de alçá-los por fim à supremacia sobre a terra. Com horror e ódio eles ouviram Jesus varrendo para longe essas suas acalentadas seguranças. Deus, ensinava ele, não fazia barganhas; não havia povo escolhido nem favoritos no reino do céu. Deus era o pai amoroso de toda a vida, tão incapaz de demonstrar favoritismo quanto o universal sol.
Todos os homens eram irmãos – tanto os pecadores quanto os filhos amados – desse divino pai. Na parábola do bom samaritano Jesus lança seu escárnio contra nossa tendência natural a glorificar nossa própria gente e minimizar a virtude dos povos de outros credos e raças. Na parábola dos trabalhadores ele rejeita a pretensão obstinada dos judeus de possuírem um crédito especial diante de Deus. Todos que Deus acolhe em seu reino, ensinava ele, Deus serve da mesma forma; não há distinção no seu tratamento, porque não há medida para sua liberalidade. De todos, além disso – como dá testemunho a parábola dos talentos e reforça o episódio da moeda da viúva, – ele exige o absoluto máximo. Não há privilégios, não há abatimentos e não há desculpas no reino do céu.
Porém não era apenas o patriotismo tribal dos judeus que Jesus ultrajava. Os judeus eram um povo que valorizava intensamente a lealdade familiar, e Jesus queria que a estreiteza das restritas afeições familiares fosse levada de arrasto pela grande torrente do amor de Deus. Para os seus seguidores, “família” deveria ser o reino do céu inteiro.
Jesus não se contentava ainda em investir contra o patriotismo e contra os laços de família em nome da paternidade universal de Deus e da irmandade de toda a humanidade; fica claro que seu ensino condenava também todas as gradações do sistema econômico, toda a riqueza privada e todas as vantagens pessoais. Todos os homens pertenciam ao reino; todas as suas posses pertenciam ao reino; o modo de vida íntegro para todos os homens, o único modo de vida íntegro, era o serviço de Deus com tudo que temos, com tudo que somos – pelo que, vez após outra, Jesus denunciava as riquezas privadas e as reservas de qualquer vida privada.
Finalmente, em sua tremenda profetização desse reino que consistia em todos os homens unidos em Deus, Jesus reservava pouca paciência para com a integridade de barganha da religião formal. Uma porção significativa de suas palavras registradas nos evangelhos está dirigida contra a meticulosa observância de regras por parte dos seguidores da piedosa carreira.
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
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